Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
A natureza da pensão alimentícia decorrente do casamento e da união estável mudou: agora ela é transitória.
Na semana passada, em uma aula de Direito de Família, ao explicar a pensão alimentícia e essa nova natureza que vai lhe dando o Direito brasileiro, ficou evidente a grande surpresa com que a sala recebia a informação. Percebi então que se a nova fisionomia da pensão alimentícia causa surpresa até entre alunos em grau avançado do Curso de Direito, certamente causará surpresa ainda maior na população em geral, que não estuda o Direito, mas o vive concretamente no dia a dia. Por isso decidi dedicar o artigo de hoje ao assunto.
A reação de surpresa que provoca a notícia de que pensão alimentícia tem agora aspecto transitório é plenamente compreensível. Por muito tempo, e digo muito tempo mesmo, a pensão alimentícia foi vista no Brasil quase como um benefício previdenciário devido pelo homem à sua ex-cônjuge ou companheira, como se fosse uma obrigação eterna, encerrada apenas pela morte.
E refiro-me à mulher como beneficiária e ao homem como provedor em razão da realidade social de então, porque na lei, desde 1977, com o advento da lei do divórcio em 26 de dezembro desse ano, o direito ao recebimento de alimentos é estabelecido em igualdade a mulher e ao homem.
Admitia-se desde sempre, é claro, que a pensão inicialmente fixada fosse alterada, que fosse majorada ou diminuída conforme as condições financeiras do devedor melhorassem ou piorassem, ou que a credora da pensão passasse a ter meios próprios de subsistência, ou constituísse entidade familiar com outra pessoa, de maneira que os dois critérios para se estabelecer pensão alimentícia – necessidades do alimentando, e possibilidades do alimentante – prevalecessem sempre.
Mas isso era admitir apenas que o valor da pensão poderia até mudar, mas a obrigação de pagá-la e o direito de recebê-la eram estabelecidos por prazo indeterminado, não cessavam nunca exceto pela demonstração da mudança das circunstâncias e pela morte do devedor.
Não é correto dizer que essa deixou de ser a regra geral adotada pelos Tribunais quando o assunto é pensão alimentícia, ou seja, que a pensão é fixada sem prazo e é de um lado devida por quem tiver condições de pagá-la enquanto tiver condições de pagá-la, e, de outro lado, direito de quem precisar recebê-la enquanto precisar recebê-la.
Entretanto, à regra geral vem-se incorporando a dos alimentos transitórios.
Esta modalidade de alimentos surgiu por construção jurisprudencial (decisões judiciais semelhantes e reiteradas) a partir da percepção de que mudanças sociais e econômicas ocorridas no Brasil nas últimas décadas tornavam a configuração tradicional da pensão alimentícia, feita nos moldes que descrevi acima, algo um tanto anacrônico, quando não injusto.
O desenvolvimento da economia brasileira e a melhora no nível de escolaridade da população possibilitaram que as mulheres tivessem participação no mercado de trabalho cada vez maior. Em 2004, havia 12,5 milhões de mulheres no mercado de trabalho brasileiro. Dez anos depois, em 2014, este número cresceu para 21,5 milhões – 44% da população economicamente ativa e empregada total. As mulheres passaram a ser a maioria da população brasileira com ensino superior completo – 1 em cada 5 o possui (entre os homens, este número é de apenas 1 em cada 9) -, e também com ensino médio completo (4 em cada 10 mulheres).
Ora, é quase desnecessário dizer que a pensão alimentícia teve suas características principais traçadas a partir de um padrão que se verificava na sociedade: homens pagam e mulheres recebem. A razão disso é muito simples: eram os homens que dominavam o mercado de trabalho, e para este se qualificavam; portanto, eram os homens que podiam prover e as mulheres que tinham de ser permanentemente providas.
É verdade que em grande medida os homens continuam a ser os provedores do casal e da família. Isso não se alterou. O que se alterou foi a capacidade das mulheres se sustentarem por si; de entrarem ou voltarem ao mercado de trabalho e proverem pelo próprio esforço a sua subsistência após o divórcio ou dissolução da união estável. A participação das mulheres no mercado de trabalho e seus índices cada vez mais altos de escolaridade vem demonstrar que aquela velha presunção que permeava a matéria, a de que ex-mulher ou companheira precisará para sempre da pensão alimentícia para viver, é uma presunção que deve ser cada vez menos absoluta e cada vez mais relativa.
Sensível a essas mudanças sociais que exigiam reformas na pensão alimentícia, foi que os Tribunais começaram a estabelecer, juntamente com o valor das pensões alimentícias, o prazo durante o qual seriam devidas. Buscaram assim atribuir uma nova função à prestação alimentícia: auxiliar o alimentado para que alcance sua autonomia financeira, garantindo-lhe uma existência digna, sem permitir, no entanto, transformar-se em pernicioso incentivo ao ócio daquele que tem condições de se erguer e andar pelas próprias pernas.
E qual é o prazo da pensão alimentícia transitória? Um ano? Dois anos? Cinco anos?
Depende. Qual a escolaridade da mulher beneficiária da pensão? Qual a sua experiência profissional? Qual o mercado de trabalho em que ela irá se reinserir? Por quanto tempo esteve afastada da vida profissional? Quais suas condições econômicas? O mercado de trabalho direciona ao investimento na própria qualificação? De quanto tempo ela precisará para obter qualificação apropriada à obtenção de meios próprios à sua subsistência?
Todas essas questões são levadas em conta na fixação do prazo dos alimentos transitórios. Não existe um único prazo ou uma tabela de prazos que os juízes consultam e aplicam na hora de estabelecer a transitoriedade dos alimentos. Tudo dependerá das circunstâncias concretas.
De maneira simples e direta, a Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.025.769/MG, sintetizou a nova visão que os Tribunais vêm adotando em relação às pensões alimentícias. Transcrevo: “A obrigação de prestar alimentos transitórios – a tempo certo – é cabível, em regra, quando o alimentando é pessoa com idade, condições e formação profissional compatíveis com uma provável inserção no mercado de trabalho, necessitando dos alimentos apenas até que atinja sua autonomia financeira, momento em que se emancipará da tutela do alimentante – outrora provedor do lar -, que será então liberado da obrigação, a qual se extinguirá automaticamente”.
A introdução do elemento de transitoriedade não acabou com a essência da pensão alimentícia como podem pensar alguns. A pensão alimentícia continua a existir e a cumprir seus objetivos de sempre, mas adquiriu dos Tribunais uma nova feição, mais correta, mais justa, mais adequada à realidade social brasileira e também mais condizente com outros princípios e valores caros ao Direito, como a solidariedade e a valorização do trabalho e da iniciativa individual.
Essa é a nova cara da pensão alimentícia no Brasil, o que não devemos mais estranhar. Até porque, se pararmos para pensar, estranho mesmo é impor a um indivíduo o encargo de sustentar outro que tem plenas condições de buscar condições próprias e obtê-las por si só.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), doutora em direito pela USP e advogada sócia-fundadora de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.
Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (26/04/2017)
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