A sócia fundadora de RBTSSA, Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, é entrevistada pela Gazeta do Povo sobre tema relevante da Reforma do Código Civil.
A semana de trabalho da Comissão de Juristas, convocada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para apresentar o anteprojeto de um novo Código Civil, foi intensa e com embates acalorados especialmente sobre pautas morais. Na última quinta-feira (4), foram discutidos trechos do texto que tratavam sobre direito à vida, direito a amantes, poligamia e até a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade no Código Civil, que é a possibilidade de uma criança ter mais de um vínculo materno ou paterno em sua certidão de nascimento. A presidência do Senado Federal, responsável pela instituição da comissão, deve receber oficialmente o texto do anteprojeto nos próximos dias.
Um dos artigos do relatório final que, como apresentado pela Gazeta do Povo, poderia dar brechas ao aborto ao considerar o embrião como “potencialidade de vida” foi alterado. O parágrafo primeiro do artigo 1511-A, em sua primeira versão, apontava que “a potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina é expressão de dignidade humana e de paternidade e de maternidade responsáveis”.
“Do jeito que está esse artigo é demasiado problemático porque ele chama a vida uterina de potencialidade e dentro do útero não há potência de vida, há ato, há vida. Sugiro a completa supressão desse parágrafo primeiro ou, se a preocupação da relatoria-geral foi de proibir a comercialização de gametas, deve estabelecer a redação de que fica vedada a comercialização de espermatozoides, óvulos e embriões”, sugeriu Maurício Bunazar, membro da comissão.
Para jurista, mesmo com mudança, artigo não dá proteção efetiva ao nascituro
Depois de uma ampla discussão, os membros aprovaram a nova versão apresentada pela, também relatora, Rosa Maria Nery que diz que “a potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida pré-uterina e uterina são expressão da dignidade humana e de paternidade responsável".
“Dessa forma, protegemos os gametas, que não podem ser vendidos, os embriões congelados, que não podem ser descartados e nós estamos dizendo isso no texto, e protegemos a vida uterina do nascituro. Colocamos isso sobre os ombros da responsabilidade paternal e maternal, porque afinal as pessoas precisam saber o que fazem com as suas coisas”, defendeu Nery. A nova versão foi aprovada sem unanimidade, já que alguns membros prefeririam que o parágrafo fosse retirado do texto.
“Essa nova redação está melhor do que a anterior, mas o dispositivo ainda continua vago. Dizer que são expressão da dignidade humana e de paternidade responsável não significa conferir uma efetiva proteção”, analisa Caio Morau, doutor em Direito Civil pela USP e professor de Direito da Universidade Católica de Brasília.
Morau acredita que a retirada do parágrafo também seria indiferente, já que com ou sem o dispositivo não haveria efeitos práticos de proteção. “Na prática, o cenário continua o mesmo”, reforça.
Artigo que trata da personalidade jurídica do nascituro é mantido
Outro ponto que, na visão de alguns juristas, também daria espaço ao avanço do aborto no Brasil, seria o acréscimo da expressão “para fins deste código” no artigo 2º que trata da personalidade jurídica.
A proposta inicial dos juristas seria alterar o texto do dispositivo para: a “personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida e termina com a morte encefálica; a lei põe a salvo, desde a concepção, para os fins deste Código, os direitos do nascituro”. Depois de discussão, na sessão da sexta-feira (5), a comissão decidiu manter o artigo 2º como está no Código Civil vigente: a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo afirmaram que a modificação do dispositivo, caso tivesse sido aprovada, daria mais fundamentação para um entendimento favorável ao aborto, também por meio do Supremo Tribunal Federal. A redação atual do artigo 2º, por exemplo, foi mencionada no voto da ministra Rosa Weber no julgamento da ação que pretende descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. Para a ministra, como o Código Civil define que a personalidade jurídica de uma pessoa só começa do nascimento com vida, o aborto seria legítimo. O acréscimo “para fins deste Código” poderia levar à interpretação de desproteção do não nascido no Código Penal, que descreve o aborto como crime não punido nos casos de estupro e de risco de vida da gestante.
Alterada durante a reunião, versão anterior do texto beneficiava amantes segundo próprios membros da comissão
Outro artigo que teve amplo debate e sofreu alterações foi o 1.564-D, que possibilitaria o reconhecimento de direitos a amantes, como a Gazeta do Povo também mostrou. Segundo a análise da doutora em Direito Civil pela USP e presidente da Associação de Direito de Família e de Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares, a versão aprovada durante a reunião está adequada.
“A alteração realizada na redação antes proposta sobre o artigo 1.564-D, deixando expresso que relação paralela a um casamento ou a uma união estável não constitui família, assim como que se houver enriquecimento sem causa haverá restituição do que tiver sido indevidamente auferido pelo cônjuge ou convivente coloca a relação de adultério no lugar onde deve ficar: não é relação familiar”, observa Tavares.
Durante a discussão, Bunazar ressaltou o perigo da primeira versão ao considerar o concubinato como uma união semelhante à união estável e ao casamento. “Há um problema fundamental aqui. Nós estamos reconhecendo que isso aqui não é união estável, não é casamento, mas é alguma coisa. O Código Civil diz que é concubinato, que é uma relação ilícita. O que estamos a fazer aqui é reconhecer que isso é um tertium genus ao lado do casamento e da união estável”, contrapôs. O tertium genus é uma expressão do direito usada para comentar sobre um “terceiro elemento”.
A possibilidade de dar direito a amantes também elevou os ânimos durante a discussão. “Essa questão se resolve na possessória, na ação de extinção de condômino, jamais no âmbito do direito de família. Se não, nós estamos legitimando, criando uma relação familiar com o concubinato. Dando mais direito à amante ou ao amante do que aquele que casou”, comentou Marco Aurélio Bezerra de Melo.
Melo também lembrou que o próprio Supremo Tribunal Federal já julgou sobre o direito a amantes. Em 2021, a Corte definiu duas teses de repercussão geral (529 e 526) que não reconhecem direitos às uniões paralelas durante o período de casamento ou união estável.
Na parte da tarde da última sexta-feira (5), Giselda Maria Hironaka, Claudia Lima Marques e Maria Cristina Santiago registraram pedidos de desculpas às mulheres que estão submetidas a relações paralelas pela falta de reconhecimento da Comissão de Juristas. Santiago chegou a pedir que a votação do artigo que tratava sobre o tema fosse aberta novamente, mas Luís Felipe Salomão, presidente da comissão, negou o pedido.
Poligamia e multiparentalidade também foram discutidas, mas não houve avanço
Apesar de terem sido rejeitados, alguns juristas defenderam a entrada de pontos polêmicos no texto do anteprojeto, como poligamia e multiparentalidade.
“Há uma questão posta pela professora Berenice, que remonta em vários artigos e que tem conexão com os deveres do casamento. Ela entende que fidelidade e coabitação não devam ser deveres decorrentes do casamento, que se votada resolve seis ou sete pontos dentro do código”, informou a relatora Rosa Nery.
“Se cair o dever de fidelidade, nós temos que derrubar a presunção pater is est”, contrapôs José Fernando Simão. A presunção pater is est atribui ao marido a paternidade dos filhos do casal. A proposta de Dias também vai contra a tese 529 do STF, que consagrou “o dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”. A proposta da jurista Maria Berenice Dias recebeu o apoio de outros cinco membros, o que não foi suficiente para ser aprovada.
Maria Berenice Dias também sugeriu o reconhecimento da multiparentalidade na proposta do novo Código Civil, ou seja, o reconhecimento de constar mais de um vínculo materno ou paterno na certidão de nascimento. “Ninguém pode tirar essa liberdade de fazer. Eu quero que o meu filho seja de um amigo e quero mais: quero [no registro] que ele seja o pai e nós duas as mães. Isso a Justiça vem reconhecendo há muito tempo. A primeira decisão que teve do tribunal reconhecendo a possibilidade desse registro fui eu que patrocinei lá no ano de 2015”, defendeu Dias.
Apesar de alguns tribunais já terem reconhecido a possibilidade de dupla paternidade ou maternidade, ainda não há legislação que a permita diretamente. “Eu encaminho apenas para ponderar que nós estamos adotando aqui multiparentalidade, essa é uma novidade que precisa ser considerada”, ressaltou a relatora Rosa Nery. A emenda de Maria Berenice Dias recebeu apoio de 10 membros, mas foi rejeitada pela comissão.